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sábado, 7 de maio de 2011

REMÉDIO D'ALMA

CAPÍTULO I - PARTE 5

Adivinhou-lhe a presença, mesmo antes de lhe ouvir a voz.
- Boa tarde.
Virou-se, furiosa, mas o sorriso quase inocente dele desarmou-a durante alguns segundos. Rapidamente se recompôs e preparava-se para descarregar a raiva que sentia. De mão estendida para ela, o homem não tinha consciência alguma do estado de nervos em que a sua demora a deixara!
- É um prazer, finalmente, conhecê-la!
Providencialmente, Manuel Caseiro aproximava-se. E depois o conhecidíssimo sociólogo que dissertaria sobre o assunto do livro. E depois João Souto. E depois outro e mais outro convidado. Em poucos minutos tudo se precipitou. E Madalena não conseguia aproximar-se de Duarte Medeiros. Aos poucos, a fúria que sentia começou a dissipar-se. E Madalena passou a ser o que era sempre: a anfitriã perfeita. Durante a meia hora que antecedeu a apresentação do livro, Madalena e Duarte fizeram as honras do evento, recebendo os convidados e criando uma atmosfera de agradável convívio. Por vezes apanhava-o a olhá-la com um ar que não conseguia decifrar. Rir-se-ia dela? Sentir-se-ia … por saber da sua aflição? Tinha de perder aquela mania de tentar adivinhar o que pensavam os outros! 
Estava no seu ambiente e tudo parecia perfeito. O sol entrava pelas vidraças da galeria, iluminando naturalmente as fotografias, antigas e recentes, do castelo de Almourol, que enchiam as paredes. Abria as cores dos vestidos primaveris das mulheres e punha-lhes reflexos dourados nas madeixas dos cabelos. Madalena, cujo cabelo, comprido e liso, de um castanho-claro que considerava até bastante banal, nunca conseguira perceber por que motivo as morenas se pintavam de louro. Tinha escolhido um vestido em tons verdes e branco, de manga comprida, mas com um decote discretamente pronunciado. Sabia valorizar o seu corpo sem o expor demasiado. Os sapatos, de saltos altos e finos, de um verde mais escuro que o do vestido, compunham o conjunto. Nas orelhas, umas argolas, minúsculas, de ouro, e, no pulso esquerdo, o fino relógio de ouro que o pai lhe oferecera há alguns anos e uma pulseira, também de ouro, de malha simples, que combinava com o fio que trazia ao pescoço. Simples, mas elegante.
A voz dele trouxe-a de volta do lugar para onde, por momentos, se tinha evadido. Alta, clara, prendendo a atenção de todos os presentes. Falava do livro, do que o motivou, da dedicação ao mesmo … Mas era, sobretudo, a forma como dizia. Como se cada um dos presentes fosse o único, como se ele estivesse ali apenas por cada um deles. O que a irritava era perceber que não era mais importante para ele do que qualquer outro dos presentes, mas sentir-se agradada pela atenção que os olhos dele lhe dedicavam.
A sessão terminou e todos se levantaram. Depois de se dirigirem à bancada onde compraram os livros, os convidados aproximavam-se ordeiramente do autor que os autografava com simpatia, sem solenidade alguma, e sempre de forma personalizada. Entretanto, Madalena encaminhava as pessoas para o jardim, onde as esperava um excelente vinho do Porto e os famosos Queijinhos do Céu, doce típico de Constância.
Mais uma vez Madalena e Duarte não conseguiram conversar, porque ambos eram, de facto, muito assediados por todos. Mas Madalena não duvidava de que ele desejava a sua companhia tanto quanto ela desejava a dele.
                                                                                    
A voz de Duarte chegou até ela, destacando-se por entre os murmúrios do jardim, no tom grave, mas doce que já reconhecia. (Pronto! Lá estava ela, de novo, a adjectivá-lo! E ainda por cima com aquela palavra!).
- …Curioso como certos perfumes conseguem transportar-nos a outros tempos e lugares! Era capaz de jurar que esta é a magnólia que sombreava certo recanto do jardim da minha casa em Castelo Branco!
Ah! Então o senhor Duarte Meireles era de Castelo Branco! Lembrava-se, agora, de ter lido alguma coisa sobre isso, aquando do convite que lhe havia dirigido para apresentar ali o seu novo livro, mas a informação esvaíra-se-lhe da memória.
Ora ali estava um bom tema de conversa. Sim, porque Madalena não pretendia deixar escapar Duarte sem conversar com ele, já que, até aí, não tinham passado do brevíssimo cumprimento inicial. Estava certa de, ao jantar, conseguir criar uma oportunidade de aproximar as suas palavras das dele.
Entretanto, o sol começava a pôr-se. Talvez descontentes com o calor antecipado, os dois rios deixaram-se tomar pelas nuvens que, carregadas, ameaçavam desabar sobre a vila. Receosos, os convidados começavam a sair e aqueles que estariam presentes no jantar dessa noite fizeram saber que iriam refrescar-se nos respectivos alojamentos – porque, apesar da chuva iminente, a tarde acabava quente e soturna - e voltariam cerca das 20.30, hora marcada para o dito repasto.
Duarte despediu-se de Madalena com um discreto aceno de cabeça e um sorriso que ela retribuiu da mesma forma.

terça-feira, 12 de abril de 2011

REMÉDIO D´ALMA


CAPÍTULO I - PARTE 4

 
Contrariamente ao que seria normal, Duarte não viveu aqueles dias de véspera, nervoso ou ansioso pelo acontecimento. Os lançamentos anteriores haviam-lhe dado alguma tarimba daquelas situações que, recordava, tinham tido peripécias, pequenas coisas a que ele, ironicamente, chamava de “pormaiores” que o faziam lembrar-se com agrado de quase todos eles. E nem um ou outro não tanto a seu contento, fosse pelo lugar escolhido ou pelas presenças, ou até pela menos conseguida mensagem da sua sempre curta alocução, o levou nunca a catalogar de desagradável ou de fiasco qualquer deles: preferia desvalorizá-los no contexto mais abrangente e gratificante do êxito que os seus livros iam conseguindo…
Curiosamente achava e pressentia muito mais facilmente, quando antecipava cenários, que a próxima apresentação teria ainda mais condições para se recordar dela com satisfação acrescida. De cada vez que se detinha a pensar nos pormenores ou no ambiente que se criaria e envolveria os presentes mais directamente interessados no sucesso da sua nova edição, nomeadamente o representante da editora, as publicações ou rádios locais que não deixariam de participar e noticiar, sentia como se já tudo estivesse aprontado e delineado para correr de acordo com as suas expectativas! E não podia deixar de sorrir ao constatar que…tendo apenas uma pálida ideia do local, não imaginando sequer como seria o lugar onde aqueles momentos marcantes iriam decorrer, as suas características de som e de conforto, pois não conhecia o dito Restaurante-Galeria, tal não o impedia de se sentir confiante de que tudo iria decorrer bem!
“Ah, pois! Estará por detrás desta minha confiança a convicção determinada da senhora dona Madalena Silgueiro?...” , perguntava a si próprio, algumas vezes, tentando contrariar o óbvio da resposta! E socorria-se, estranhamente, de um subterfúgio comezinho, ele que se sabia tão pouco dado a expedientes desses, soletrando-o a si mesmo silenciosamente: “ Valorizas mais depressa as capacidades femininas quando te dás conta da ausência dessa companhia na tua vida, é isso! ”
Sabendo o argumento simplista de mais para se auto-convencer, achava-o suficientemente interessante para o ajudar a não perder tempo com fantasias! Afinal, dizia de si para si como remate, assumira querer estar só e fazia tudo menos sentido estar a lucubrar sobre pormenores! Ainda por cima sobre alguém que nem nunca sequer vira! E não pôde deixar de dar uma sonora ainda que breve gargalhada, quando outro “pormenor” lhe acudiu à mente: “ E se a senhora até for casada?...”
Um pouco envergonhado com aquela possibilidade, verosímil, e que antes nunca lhe ocorrera, aspirou o ar ainda fresco da avenida por onde se embrenhou, a pé. Quando tinha tempo gostava de calcorrear as ruas assim, olhando distraído para montras e carros; era uma forma de evitar absorver-se com certos dos seus pensamentos.
“Caraças! … Desta vez não vai acontecer! …”, disse, soletrando as palavras em silêncio, ao mesmo tempo que, com um estalar de dedos elegante, chamou o empregado para lhe pedir a conta. A lembrança de que, outra vez, se esquecera de convidar Teresa subtraiu-o à calma com que passava os olhos pelas notícias do dia, enquanto tomava um rápido e frugal almoço, e colocou-lhe no rosto um esgar de aborrecimento consigo próprio que seria notório a quem estivesse a olhá-lo.
Meteu uma nota de 10 euros na mão do homem e nem se preocupou sequer se tinha direito a troco, saindo a correr, sem se despedir, ante o olhar atónito daquele. Entrou na estação dos correios, do outro lado da rua: para cúmulo de uma manhã que, decididamente, estava a correr menos bem, até do telemóvel se tinha esquecido! E ele queria dizer de viva voz à amiga que gostaria da sua presença na cerimónia de lançamento do seu livro. Sentia que seria motivo para nem ela lhe perdoar nem ele a si próprio, se tivesse a desfaçatez de novo esquecimento! Teresa não o merecia, de facto, e ele já não teria moral para inventar qualquer desculpa que não se justificaria nem seria verosímil. Das outras vezes, à laia de compensação para as suas aberrantes omissões, acabava por lhe levar pessoalmente um exemplar da primeira edição que autografava na presença da amiga. Esta, com inexcedível elegância, desviava o diálogo e evitava as esperadas desculpas, e a recordação da postura dela, em momentos embaraçosos para ele, acentuava o seu mal-estar, por contraste.
Quando voltou à rua, trazia o semblante menos carrancudo! Acabara de ouvir Teresa “aceitar com enorme prazer o convite que muito a sensibilizava!”. Penitenciava-se, ainda, mentalmente, por todas as vezes anteriores em que se esquecera de convidar a amiga, mas sentia-se mais aliviado por, finalmente, ter sido capaz de se lembrar…
A falta de empatia com a colega dos bancos da escola primária, vizinha e amiga de lá de casa, que, em adolescente, não lhe escondera alguma admiração e afecto, não justificava tanto afastamento! Tanto mais quanto a sensatez de Teresa, rapariga que, sem alguns atributos de beleza, compensava essa ausência com uma inteligência arguta e graciosa, notada pelo círculo restrito de amigos e reconhecida por ele próprio, fora capaz de, ao perceber o seu desinteresse e, sem azedume ou mágoa, com uma subtileza que sempre o surpreendera, manter discreta admiração e genuíno afecto, sem o ostentar, pelo rapaz humilde que crescera e se ia tornando conhecido. Nem mesmo depois de o saber casado essa postura digna se alterou. E se Duarte voltou a ficar só, ausente e longe, nem por isso Teresa deixava de lhe demonstrar quanto o apreciava, tão desprendida quanto elegante e afectuosamente. ”Uma Senhora, na verdade.”, ia pensando enquanto caminhava de novo apressado, contente por ter podido lembrar-se de algo que deixaria Teresa feliz! O tom de voz dela, ao despedir-se, não lhe deixava qualquer dúvida sobre isso e essa certeza fê-lo voltar a sentir-se de bem consigo próprio, voltando os pensamentos serenos para os acontecimentos que se seguiriam e que estavam cada vez mais próximos.
Aquietava-lhe a mente a sensação sempre mais nítida de que tudo ia correr bem e daí imaginar-se a revoltar a lugares que o tempo e a ausência iam deixando no limbo era um passo! E aquela anfitriã … Madalena de seu nome, cujo apelido lhe lembrava algo curioso, mas que não sabia especificar!
Ia ser, no mínimo, interessante conhecer e privar de perto com tal personagem, confessou, a si próprio, em silêncio. E, pela primeira vez, deu por si a desejar o tempo mais veloz, ainda que faltassem apenas dois dias e que as coisas que ainda tinha de aprontar até lá fizessem parecer-lhe o tempo passar mais depressa.

sábado, 2 de abril de 2011

REMÉDIO D'ALMA



CAPÍTULO I  - PARTE 3


16.30. Sentada no jardim, Madalena começava a sentir-se inquieta. No último contacto tido com Duarte Meireles, este havia-lhe dito que chegaria algum tempo antes da hora marcada para o início da apresentação do livro. Não lhe dissera, no entanto, quanto tempo antes. Agora, faltava uma hora e meia e não havia meio de o conseguir contactar.
Da parte dela, como de costume, estava tudo pronto. De manhã, ultimara os preparativos para o evento, supervisionando todos os pormenores e, depois do almoço, viajara até Tomar para cuidar da sua aparência. Ao sair do salão de cabeleireira/estética, duas horas depois de lá ter entrado, sorriu para a sua imagem projectada no vidro da montra. Era vaidosa, reconhecia, muito vaidosa mesmo.  Não pôde deixar de pensar na impressão que causaria no petulante escritor. Por várias vezes dera por si a pensar como seria ele ao vivo. Adivinhava-lhe o sorriso irónico, o leve arquear de sobrancelha troçando, discretamente, dela, o olhar de sobranceria que a sua superioridade presumida lhe conferia. Estava, decididamente, ansiosa por conhecê-lo pessoalmente e mostrar-lhe que sem a sua insistência – a que, sentia, o irritava, profundamente –, os seus cuidados, a sua supervisão, o evento não seria o sucesso que ela previa. No fundo, pretendia afrontá-lo com o seu profissionalismo.
16.45. Lá dentro, na galeria, Manuel Caseiro continuava a mudar a posição de um ou outro trabalho seu, infernizando todos os que, inadvertidamente, se aproximavam dele. Era um perfeccionista, sem dúvida.
Madalena procurou relaxar, puxando a cadeira mais para a frente, em busca do sol daquela tarde primaveril. Evadiu-se no calor e na tranquilidade do jardim. A lembrança de que João Souto estaria presente no evento acalmou-a. Nunca se espantara com as “coincidências” com que a vida a brindava frequentemente. Esta era mais uma e agradava-lhe de sobremaneira. Conhecera João há cerca de 15 anos e a diferença de idades que os separava – ele era mais velho do que ela 20 anos – nunca tivera importância na amizade que, desde os primeiros momentos partilharam. Recomendado por amigos comuns, o advogado ajudara-a a resolver uma questão relacionada com o aluguer de um apartamento que os pais lhe tinham oferecido. Estabeleceu-se, de imediato, uma relação de respeito, de admiração e de cumplicidade entre ambos. A ela nunca lhe passara despercebida a forma como o amigo a olhava. Até porque a apetência dele pelo sexo feminino era bastante comentada. No entanto, nunca tinham passado do carinho de amigos e de uma ou outra insinuação respeitosamente maliciosa. E, agora, João aparecia-lhe como conhecido de Duarte Meireles e comentador do livro.
O que é que ligaria Duarte Meireles a João Sousa? Um era historiador, o outro advogado. É certo que ambos escreviam, mas os livros de Duarte  Meireles tinham atingido um elevado grau de popularidade – provavelmente devido às histórias romanceadas que fazia da História - enquanto que os do seu amigo faziam sucesso apenas entre o seu núcleo de colegas, amigos, familiares, conhecidos e clientes. Madalena lera todas as críticas que encontrara sobre Duarte Meireles e as suas obras. Todas eram unânimes em apresentá-lo como um profissional competente e rigoroso e como um homem recatado, mas de trato afável. Daí não entender a animosidade contida que sentia na voz e nas palavras de Duarte Meireles. Irritava-o, não duvidava disso.
E, agora, o homem parecia disposto a atormentá-la com a demora em chegar.
Perdida nestes pensamentos, ouviu o relógio da torre da igreja bater as 17 horas.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

REMÉDIO D´ALMA



CAPÍTULO I - PARTE 2

        
Lembrava-se vagamente das ruelas estreitas e empinadas da vilória, encravada entre a imensidão da planície, mas sem fazer parte dela, e o sopé das serras d´Aire e Candeeiros, espelhando-se nas águas quase sempre serenas do Zêzere que davam às casinhas pequenas um aspecto ainda mais diminuto, ao mesmo tempo que pareciam refrescá-las e às ruas, quando a canícula dos dias de Julho/Agosto apertava. O espelho de água ainda emprestava um ar docemente fantasmagórico ao conjunto quando o pôr-do-sol se fazia anunciar, fazendo descer as gaivotas ao largo fronteiro à fabrica de pasta de papel, vizinho da praia fluvial com que o rio, numa das curvas mais bem desenhadas de todo o seu percurso, desde o Tejo-pai, quisera brindar indígenas e visitantes – que por essa altura vinham dos mais diversos locais e enchiam, sobretudo durante a tarde, o areal mais comprido que largo e que, nalguns pontos, se misturava com a relva tratada sob a copa de algumas faias frondosas, proporcionando a locais e forasteiros momentos de muito agradável lazer  - oferecendo a uns a possibilidade de ir a banhos sem ver o mar e dando a outros a oportunidade de conhecer uma terra minusculamente, como que de má vontade, apontada no mapa e da qual, a maioria apenas ouvira falar como sendo a Terra de Camões e uma minoria ainda maior lembrava-se apenas vagamente de lhe chamarem, por isso, a “Vila-Poema”.
Mas, Duarte, ainda que há alguns anos tivesse deixado de cirandar por aquela zona, depois que se fixara em Lisboa por força do sucesso que os seus livros iam merecendo, conservava ainda memórias bem vivas da região e desfiava-as agora, depois de desligar o telefone e de confirmar com Madalena Silgueiro que seria ela a próxima futura anfitriã da apresentação do seu mais recente “prelo”. Memórias que, estranhamente, lhe pareciam mais próximas depois de ouvir a voz timbrada e subtilmente nervosa da mulher que, proprietária do que, com algum desplante, ela própria considerara “o espaço ideal para o lançamento público do seu último trabalho”. A verdade é que, sem ter para isso uma explicação consistente, a senhora, ou menina, (estranho como, constatava a sorrir, nem perguntara ou sequer tentara que por sua iniciativa, desde que iniciara negociações, ela lhe revelasse a sua idade , sabendo-a apenas e só, proprietária do espaço que, alguns dias depois, iria servir, durante algumas horas, de cenário a novo contacto com os seus potenciais leitores, e que a própria teimava em considerar o ideal para o efeito! “Sobretudo para um escritor com as características do Duarte…” – dissera-lhe num tom que ele, agora que as palavras dela se lhe insinuavam mais, começava a considerar sobranceiramente familiar!)conseguira convencê-lo, a optar por um local que lhe era totalmente desconhecido e mais do que isso, fora dos lugares muito mais cosmopolitas onde fizera o lançamento das suas anteriores cinco edições! Mais estranho e curioso é que, desde o primeiro contacto, e fora ela que os fizera todos, via telefone, à excepção de um e-mail a detalhar em pormenor as características do restaurante-galeria e que lhe serviu para ficar com o seu endereço electrónico também, a determinação daquela mulher fora progredindo e os seus efeitos entranhando-se em si de forma tão sibilina e subtil que ainda que o quisesse ter feito, não teria podido evitar render-se-lhe! Sem se dar conta, um fino e subtil sorriso ia-lhe aflorando aos lábios, enquanto misturava estes pensamentos com as recordações das viagens por aqueles locais e das características, ricas de Historia, daqueles lugares!
Lembrava como ficava perto o Castelo de Almourol, fortaleza erigida pelos Templários no meio do rio, um pouco mais abaixo de Constância e a pouco minutos mais, de automóvel ou de comboio – era neste meio de transporte, na famosa linha da Beira Baixa, que fazia algumas dessas viagens, a caminho de casa, em Castelo Branco, antes de se tornar conhecido pelos seus escritos e adquirir viatura própria – ficava Vila Nova da Barquinha, a vila presépio, à beira rio plantada, como lhe chamavam… ou um pouco mais para oeste, mas também não muito distante, Tomar, que apesar do marasmo a que estava ainda votada, não deixava de ser a cidade da dita Ordem, sediada que foi no celebérrimo Convento de Cristo e que erguera na “ilhota” no meio do rio o também já referido e romântico Castelo. E Torres Novas, mais para sul,  conhecida por ser a cidade do Almonda, rio que ainda dá o nome a uma das maiores fábricas de papel, curiosamente também de escrita, do país! Enfim, motivos que, inconscientemente ou não, terão contribuído para a opção que acabara de tomar de entregar àquela mulher - cuja persistência o soubera convencer a dizer-lhe “sim!” com um sorriso que ela não viu, mas desconfiava que havia pressentido - a organização de um evento vital para a boa aceitação junto dos leitores do seu mais recente livro.
Aquela voz determinada interpunha-se intermitente para o distrair das lembranças de tempos ainda não muito distantes em que nas suas frequentes viagens, algumas nocturnas, se deleitava com o serpentear prateado do rio, a coberto da calma e do luar, aos quais o silêncio da noite emprestava um romantismo solene quando não era interrompido pelo silvo do comboio numa curva mais apertada da linha, e que na sua necessária inclinação quase parecia tocar aquela imensidão húmida que se estendia montanha acima, quase a perder de vista!
Estranhamente, pensava, era quando trazia à memória tais imagens que a voz da sua próxima anfitriã parecia plasmar-se no seu rebobinar mental daquelas viagens, como que querendo ter quebrado muitos dos momentos de agradável solidão que elas continham, partilhando-as! O tom descaradamente familiar com que omitiu o seu apelido já não o fazia sentir-se algo irritado interiormente, pela sobranceria, mas ia, aos poucos e de cada vez que ele lhe aflorava a mente, colocando-lhe nos lábios o sorriso persistente que o fez, sem querer, ansiar pela anunciada apresentação d’ O Castelo do Rio!
Algo de pouco habitual se estaria a passar com ele para deixar que nos seus pensamentos se intrometesse a voz de alguém que lhe era de todo desconhecido. Mas, racional como se confessava, não deixou de reconhecer para si mesmo que alguma coisa de diferente teria que ter aquela voz para provocar efeito tão pouco comum nele!
Acendendo um cigarro procurou desviar o pensamento para coisas mais pragmáticas e próximas, enquanto descia a avenida, estugando o passo ao dar-se conta da distância a que ainda estava da mais próxima estação do metro que o levaria até próximo do apartamento onde residia. Tinha ainda que tratar de uma quantidade infinda de coisas comezinhas, antes de voltar de novo a dedicar-se às aborrecidas, mas inevitáveis burocracias relacionadas com as actuais e futuras edições dos seus escritos. “E ainda me falta passar por aquele safado! Sem as últimas dicas, não avança com nada!...”, pensou, apagando a beata do desagradável cigarro no cinzeiro do lado de dentro da porta do prédio. A paciência do seu amigo Mário é que ia de novo ser posta à prova pois ia na terceira semana que lhe prometera almoçar com ele para algumas conversas que urgiam e, constatava, teriam de ficar para outras tantas mais tarde! Evitava assim, também, umas quantas evasivas para fugir às suas frequentes insinuações por ainda continuar só. Adorava a bonomia do amigo, mas aborrecia-o, por vezes, a insistência com que parecia querer vê-lo com alguém que fosse “mais do que uma gaja boa, uma companheira solidária, que partilhe das tuas inatas capacidades e te ature as manias…”.
As frequentes e tão apimentadas quanto graciosas e indeléveis “bocas” do seu amigo de há longos anos, puseram-lhe o pensamento, outra vez, no trilho dos caminhos e das viagens pela província, do local onde, incrivelmente – dizia-o a si próprio – e à revelia de tudo o que, pouco mais de um mês antes, pudesse ter pensado acerca disso, iria fazer o lançamento do seu novo livro! Tinha já uma primeira impressão sobre o impacto e a aceitação que ele teria junto do público, através da opinião que Madalena - a quem, como era habitual antes dum evento como aquele, enviara alguns exemplares para autografar “in loco” durante o acontecimento – não se coibira de lhe dar, numa das conversas de negociações que com ela tinha tido e na qual ela aproveitara, mais uma vez, para lhe demonstrar o quanto estava determinada a fazer de Constância e da sua Galeria um lugar badalado, ao menos por algumas horas!
- Sou suspeita, bem sei, mas adorei, senhor Meireles! Nem pense em fazer com que eu perca a oportunidade de lhe dizer pessoalmente o que achei do seu romance!
Tinha intuído um esgar vitorioso no rosto feminino do outro lado do fio, ao perceber que ele ficou por alguns momentos silencioso, sem querer ou sem poder argumentar! E essa primeira manifestação tão genuína dera-lhe também a primeira noção, ainda que mínima, do impacto que o seu livro poderia vir a ter fora da capital e dos centros com mais apetência pelas coisas da literatura. Isso e a forma como com ele argumentava em breves, mas intensos diálogos ao telefone, sem nunca se esquecer de rematar cada argumento com um sorriso que sabia ser cativante, mesmo quando no meio de manifestações de desacordo! “Interessante! Muito interessante mesmo!...”, pensava então.
Decididamente, resolveu dedicar a maior parte do seu tempo até lá à preparação do evento! E decidiu que não tinha de ser mais solene que os anteriores, e desejou mesmo que pudesse ser mais intimista, sem que isso lhe retirasse a visibilidade, pelo menos local e regional! Seria uma forma de prestar homenagem a um público com menos possibilidades de aceder a manifestações daquele cariz e também uma maneira a seu modo, de alguma forma original, de sair do estabelecido em acontecimentos semelhantes! E sentiu-se entusiasmar como nem aquando da estreia, quando se confrontou com o nervoso miudinho de pensar que tanta gente iria ter acesso, poder ler o que ele escrevia!... E deu por si a agradecer à mulher que ainda não conhecia o querer, a persistência e o arreganho argumentativo de que lhe dera provas!
          Apesar deles, conseguira, contudo, que Madalena, não obstante a sua persistência, concordasse em que seria ele a escolher o momento da breve alocução que dirigiria aos assistentes e convidados e seria também de sua iniciativa a escolha destes. Em tudo o resto, a liberdade e a criatividade dela, ele não iria interferir, assentaram! Com estes pensamentos mais ou menos arrumados, voltou a sair do apartamento que não passava de um pequeno espaço onde, para além da panóplia de “ferramentas” relacionadas com a sua actividade de autor, entre as quais sobressaíam a secretária metálica, o pc e acessórios, e uma ou duas estantes pejadas de livros e outra documentação avulsa, se via a um canto desta salinha de trabalho uma planta que a tornava mais airosa e na parede atrás de si, um quadro emoldurando a pauta da “Moonlight Sonata” de Beethoven! - Adorava música e, em particular, algumas sinfonias e concertos clássicos e aquela era uma delas... Fora-lhe oferecido por outro dos seus maiores amigos, o Doutor Carlos, que apreciava tanto como ele a harmonia dos sons, mas “não tinha ouvido nem para as soletrar ou sequer assobiar” como ele lhe dizia! Aquele que considerava o seu refúgio de trabalho e meditação, tinha ainda o quarto individual, que era, talvez, o único sítio parecido com um lar a sério, atapetado e com uma cama cómoda, um aparelho de tv que nunca via, um pequeno bar e ao lado de uma cómoda e de um guarda-fatos onde cabiam todas as peças das suas indumentárias, que gostava de mudar com frequência, no único espaço vazio sobrante, outra pequena estante com...mais livros! Sobre o espaldar da cama outro quadro, este com laivos de erotismo, representando uma bela mulher nua, de costas, numa pose entre a timidez e o insinuante, de autor desconhecido! O quarto de banho tinha apenas o indispensável, além de um pequeno armário onde guardava as coisas da sua higiene pessoal. Por fim, uma pequena “kitchnet” onde, às vezes, conseguia tomar o pequeno almoço!...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

REMÉDIO D'ALMA


 CAPÍTULO I - PARTE 1


Madalena terminou o chá de jasmim e recostou-se na cadeira, olhando em volta. Era o seu momento de paz. Não o seu momento preferido do dia, porque os seus dias eram, habitualmente, felizes. Mas, aqueles eram os minutos em que relaxava, de facto, e fazia o balanço do dia que passara e planeava o seguinte. Àquela hora já todos tinham saído, deixando os espaços arrumados e ela sentava-se na cozinha a tomar um chá e a repetir a si mesma a certeza da decisão que tomara dois anos antes.
A vida decorria sem grandes percalços, não propriamente vazia, simplesmente linear. Continuava a viver em Tomar, onde tinha nascido e para onde voltara para leccionar, depois do curso terminado. Nunca casara nem tivera relacionamentos longos. Dividia o tempo entre as aulas, as saídas com os amigos, um ou outro namorado de ocasião, e as suas duas grandes paixões: as viagens e os livros. Em suma, a vida corria-lhe bem.
            Mas, apesar dos 40 anos, Madalena sentia que ainda estava tudo por fazer. Era bonita, alegre, sempre bem-disposta e suficientemente pragmática para saber que a qualquer momento a sua vida podia mudar e ela não voltaria as costas a essa mudança.
Assim, quando a oportunidade surgiu, Madalena não hesitou em mudar toda a sua vida.
Constância fazia parte do seu imaginário infantil. Quando era criança, passava, frequentemente, os fins-de-semana de Verão, com os pais, na praia fluvial daquela vila. Bem, na altura, a dita praia não passava de uma estreita e curta língua de areia que bordejava o Zêzere, mas que fazia as delícias da criançada da zona. A viagem, embora não demorasse mais de uma hora, era, por si só, uma festa. E o dia passado na areia e na água, ao sol, com os primos, era o paraíso na Terra. Madalena adorava estar na água e só a enorme taça de salada de fruta, feita com banana, pêssego, pêra e laranja a boiarem no molho que o açúcar amarelo deixava, a conseguia tirar de lá. Já adolescente, continuava a ir com os pais, os primos e os tios, mas escapulia-se, frequentemente, para o outro lado do rio, cujo único acesso era a nado. A densa vegetação dessa margem permitia brincadeiras e namoricos próprios da idade. E, à noite, ficavam todos para as festas, os bailes, as feiras. Madalena gostava, particularmente, dessas noites quentes de Verão em que percorria, com os primos e os amigos, as estreitas ruas da vila. Tanto as ruas como as casas lhe lembravam o Portugal dos Pequenitos que visitara, uma vez, ainda criança.
Conhecia bem o restaurante. Ficava na rua principal da vila e sempre a fascinara o aspecto da casa antiga. Não era demasiado grande e, por isso, tinha um ar acolhedor. O jardim, cercado por um belíssimo gradeamento de ferro forjado, escondia quase toda a casa, excepto a fachada principal, o que a tornava ainda mais misteriosa. Sempre que por ali passava, Madalena quedava-se, com o nariz encostado ao portão, espreitando para dentro. Fascinava-a, sobretudo, o grande sino dourado, pendurado junto à entrada principal. Sonhava que naquela casa viviam pessoas diferentes, extraordinárias. Chegava mesmo a inventar que ali vivia um velho marinheiro reformado, uma excêntrica dama inglesa ou um pirata que se fazia passar por um cavalheiro. À medida que foi crescendo deixou de fantasiar, mas a casa continuou a exercer um enorme fascínio sobre ela.
Quando soube que o restaurante em que a casa tinha sido transformada estava à venda percebeu imediatamente que aquele era o ponto de viragem da sua vida. Já ali tinha jantado algumas vezes e sabia que o espaço merecia muito mais do que duas ou três salas onde comer e um jardim pouco aproveitado. Deslocou-se a Constância, num Sábado à tarde, visitou a casa com os proprietários e, nesse mesmo dia, fechou o negócio. Durante a viagem de regresso para Tomar, foi aperfeiçoando o plano que tinha delineado ainda durante a visita à casa. Sabia muito bem o que fazer com aquele espaço. Numa semana vendeu duas propriedades que os pais lhe tinham oferecido, tratou dos trâmites legais para a compra do espaço, tratou da sua saída do ensino e encontrou uma casa, em Constância, mesmo nas traseiras do antigo restaurante, para onde se mudou duas semanas depois. O espírito pragmático de Madalena sobrepôs-se a todas as dúvidas e receios de familiares e amigos. Percebeu que era aquilo que queria da vida e, rapidamente, o pôs em prática.
Agora, dois anos depois, sentia-se completamente “em casa”. Tinha concebido um espaço completamente diferente dos que conhecia, apostara num conceito inovador e não se arrependera. O restaurante estava sempre cheio, a livraria apresentava um volume de vendas invulgar e a galeria era muito frequentada. Os clientes e visitantes apareciam vindos de todo o país, de todas as faixas etárias e sociais.
O grande hall de entrada permitia o acesso ao restaurante, em frente, e à livraria e galeria de arte, respectivamente, à esquerda. O corredor que acompanhava a livraria e desembocava na galeria era todo envidraçado, o que trazia uma luminosidade pouco habitual neste tipo de espaços, e abria a galeria para o jardim. Este era aproveitado para refeições ao ar livre, quando o tempo o permitia ou para prolongar o espaço da galeria e livraria, aquando de eventos importantes, o que acontecia regularmente. Os três espaços criavam uma harmonia perfeita entre si, sendo cada um o prolongamento dos outros. Nem os clientes do restaurante escapavam à arte, já que as paredes se encontravam decoradas com poemas, quadros e fotografias de elevada qualidade, o mesmo acontecendo com as esculturas dispersas por ali e até com as ementas que se relacionavam sempre, de alguma maneira, com o assunto.
Era para um desses eventos que Madalena se preparava nessa noite. Embora, a apresentação do livro de Duarte Meireles começasse cerca das dezoito horas do dia seguinte, já estava tudo preparado. Como sempre, Madalena tinha cuidado pessoal e meticulosamente de cada detalhe. Lera o livro com a antecedência possível e, versando aquele sobre o castelo de Almourol, rapidamente conseguiu que um fotógrafo da zona, Manuel Caseiro, um ex-colega de trabalho, professor de Educação Visual e Tecnológica, mas também um apaixonado pela fotografia, ali expusesse uma série de trabalhos que ela já tinha visto sobre o tema. Em conjunto com Manuel ainda conseguiu enriquecer a exposição com o resultado de uma exaustiva pesquisa sobre fotos antiquíssimas do local.
As mesas onde se sentariam o autor e os convidados que falariam sobre ele e sobre o livro estavam já dispostas e decoradas no topo da galeria, bem como as cadeiras para a assistência e uma bancada cheia de exemplares que, depois de vendidos – disso cuidaria uma funcionária da casa – seriam, informalmente, autografados pelo autor. Como o tempo já o permitia, seria, posteriormente, servido um Porto de honra, no jardim. Autor e alguns convidados tinham mesa reservada para um jantar tardio no restaurante.
Madalena sentia-se agitada interiormente. Apesar de ter planeado tudo cuidadosamente até ao mais ínfimo pormenor, havia que contar sempre com a personalidade de cada escritor, pintor, escultor, fotógrafo … Este parecera-lhe demasiado reservado quando tinham falado ao telefone. É certo que o seu tom autoritário assustava, habitualmente, qualquer um. Mas, depois de um breve esgrimir de palavras, apercebera-se de que, subtilmente, Duarte Meireles conseguira chegar a um acordo com ela: deixou-a participar em tudo o que se relacionava com a organização do evento, mas, peremptoriamente, não abdicou do que e como diria e de quem convidaria. Madalena não estava habituada a ser contrariada e irritou-a que o autor tivesse levado a sua ideia adiante sem lhe dar possibilidades de retorquir. Percebeu-lhe a personalidade discretamente forte e isso incomodava-a por saber que não teria o poder habitual de ser senhora absoluta da situação.
Lavou e arrumou a chávena do chá, apagou as luzes e saiu pela porta das traseiras, dirigindo-se a casa. No dia seguinte se veria.