terça-feira, 12 de abril de 2011

REMÉDIO D´ALMA


CAPÍTULO I - PARTE 4

 
Contrariamente ao que seria normal, Duarte não viveu aqueles dias de véspera, nervoso ou ansioso pelo acontecimento. Os lançamentos anteriores haviam-lhe dado alguma tarimba daquelas situações que, recordava, tinham tido peripécias, pequenas coisas a que ele, ironicamente, chamava de “pormaiores” que o faziam lembrar-se com agrado de quase todos eles. E nem um ou outro não tanto a seu contento, fosse pelo lugar escolhido ou pelas presenças, ou até pela menos conseguida mensagem da sua sempre curta alocução, o levou nunca a catalogar de desagradável ou de fiasco qualquer deles: preferia desvalorizá-los no contexto mais abrangente e gratificante do êxito que os seus livros iam conseguindo…
Curiosamente achava e pressentia muito mais facilmente, quando antecipava cenários, que a próxima apresentação teria ainda mais condições para se recordar dela com satisfação acrescida. De cada vez que se detinha a pensar nos pormenores ou no ambiente que se criaria e envolveria os presentes mais directamente interessados no sucesso da sua nova edição, nomeadamente o representante da editora, as publicações ou rádios locais que não deixariam de participar e noticiar, sentia como se já tudo estivesse aprontado e delineado para correr de acordo com as suas expectativas! E não podia deixar de sorrir ao constatar que…tendo apenas uma pálida ideia do local, não imaginando sequer como seria o lugar onde aqueles momentos marcantes iriam decorrer, as suas características de som e de conforto, pois não conhecia o dito Restaurante-Galeria, tal não o impedia de se sentir confiante de que tudo iria decorrer bem!
“Ah, pois! Estará por detrás desta minha confiança a convicção determinada da senhora dona Madalena Silgueiro?...” , perguntava a si próprio, algumas vezes, tentando contrariar o óbvio da resposta! E socorria-se, estranhamente, de um subterfúgio comezinho, ele que se sabia tão pouco dado a expedientes desses, soletrando-o a si mesmo silenciosamente: “ Valorizas mais depressa as capacidades femininas quando te dás conta da ausência dessa companhia na tua vida, é isso! ”
Sabendo o argumento simplista de mais para se auto-convencer, achava-o suficientemente interessante para o ajudar a não perder tempo com fantasias! Afinal, dizia de si para si como remate, assumira querer estar só e fazia tudo menos sentido estar a lucubrar sobre pormenores! Ainda por cima sobre alguém que nem nunca sequer vira! E não pôde deixar de dar uma sonora ainda que breve gargalhada, quando outro “pormenor” lhe acudiu à mente: “ E se a senhora até for casada?...”
Um pouco envergonhado com aquela possibilidade, verosímil, e que antes nunca lhe ocorrera, aspirou o ar ainda fresco da avenida por onde se embrenhou, a pé. Quando tinha tempo gostava de calcorrear as ruas assim, olhando distraído para montras e carros; era uma forma de evitar absorver-se com certos dos seus pensamentos.
“Caraças! … Desta vez não vai acontecer! …”, disse, soletrando as palavras em silêncio, ao mesmo tempo que, com um estalar de dedos elegante, chamou o empregado para lhe pedir a conta. A lembrança de que, outra vez, se esquecera de convidar Teresa subtraiu-o à calma com que passava os olhos pelas notícias do dia, enquanto tomava um rápido e frugal almoço, e colocou-lhe no rosto um esgar de aborrecimento consigo próprio que seria notório a quem estivesse a olhá-lo.
Meteu uma nota de 10 euros na mão do homem e nem se preocupou sequer se tinha direito a troco, saindo a correr, sem se despedir, ante o olhar atónito daquele. Entrou na estação dos correios, do outro lado da rua: para cúmulo de uma manhã que, decididamente, estava a correr menos bem, até do telemóvel se tinha esquecido! E ele queria dizer de viva voz à amiga que gostaria da sua presença na cerimónia de lançamento do seu livro. Sentia que seria motivo para nem ela lhe perdoar nem ele a si próprio, se tivesse a desfaçatez de novo esquecimento! Teresa não o merecia, de facto, e ele já não teria moral para inventar qualquer desculpa que não se justificaria nem seria verosímil. Das outras vezes, à laia de compensação para as suas aberrantes omissões, acabava por lhe levar pessoalmente um exemplar da primeira edição que autografava na presença da amiga. Esta, com inexcedível elegância, desviava o diálogo e evitava as esperadas desculpas, e a recordação da postura dela, em momentos embaraçosos para ele, acentuava o seu mal-estar, por contraste.
Quando voltou à rua, trazia o semblante menos carrancudo! Acabara de ouvir Teresa “aceitar com enorme prazer o convite que muito a sensibilizava!”. Penitenciava-se, ainda, mentalmente, por todas as vezes anteriores em que se esquecera de convidar a amiga, mas sentia-se mais aliviado por, finalmente, ter sido capaz de se lembrar…
A falta de empatia com a colega dos bancos da escola primária, vizinha e amiga de lá de casa, que, em adolescente, não lhe escondera alguma admiração e afecto, não justificava tanto afastamento! Tanto mais quanto a sensatez de Teresa, rapariga que, sem alguns atributos de beleza, compensava essa ausência com uma inteligência arguta e graciosa, notada pelo círculo restrito de amigos e reconhecida por ele próprio, fora capaz de, ao perceber o seu desinteresse e, sem azedume ou mágoa, com uma subtileza que sempre o surpreendera, manter discreta admiração e genuíno afecto, sem o ostentar, pelo rapaz humilde que crescera e se ia tornando conhecido. Nem mesmo depois de o saber casado essa postura digna se alterou. E se Duarte voltou a ficar só, ausente e longe, nem por isso Teresa deixava de lhe demonstrar quanto o apreciava, tão desprendida quanto elegante e afectuosamente. ”Uma Senhora, na verdade.”, ia pensando enquanto caminhava de novo apressado, contente por ter podido lembrar-se de algo que deixaria Teresa feliz! O tom de voz dela, ao despedir-se, não lhe deixava qualquer dúvida sobre isso e essa certeza fê-lo voltar a sentir-se de bem consigo próprio, voltando os pensamentos serenos para os acontecimentos que se seguiriam e que estavam cada vez mais próximos.
Aquietava-lhe a mente a sensação sempre mais nítida de que tudo ia correr bem e daí imaginar-se a revoltar a lugares que o tempo e a ausência iam deixando no limbo era um passo! E aquela anfitriã … Madalena de seu nome, cujo apelido lhe lembrava algo curioso, mas que não sabia especificar!
Ia ser, no mínimo, interessante conhecer e privar de perto com tal personagem, confessou, a si próprio, em silêncio. E, pela primeira vez, deu por si a desejar o tempo mais veloz, ainda que faltassem apenas dois dias e que as coisas que ainda tinha de aprontar até lá fizessem parecer-lhe o tempo passar mais depressa.

A NOITE DAS MULHERES CANTORAS

    No final dos anos 80, cinco jovens mulheres reúnem-se, durante meses, para formarem uma banda que acaba por ter bastante sucesso. Mas, apenas o tempo que antecede o primeiro grande espectáculo é narrado. O fio condutor é-nos dado pelo ponto de vista de uma destas mulheres que conta a história 21 anos depois de ela acontecer. Personalidades distintas ligadas por um desejo de êxito - perfeitamente actual! - moldam-se num universo em que a aniquilação do indivíduo perante o colectivo, em conjunto com a idolatria à personagem que inicia o projecto, leva a um incidente trágico e a rumos de vida díspares.

    Nunca tinha lido nenhum livro de Lídia Jorge. Neste, retrata-se a sociedade da época de forma bastante realista, conseguimos reconhecer facilmente a década e reconhecer-nos numa ou outra característica de uma ou outra personagem. Prefiro, no entanto, histórias mais distantes da realidade com que me confronto todos os dias. A história de amor que perpassa na obra pareceu-me vulgar, sem grande consistência, com um desfecho pouco claro.

    Gostei, mas não me apaixonei pelos lugares, pela época, pelas personagens ou pela história. 

                                                                                                                                                Simone 

sábado, 2 de abril de 2011

REMÉDIO D'ALMA



CAPÍTULO I  - PARTE 3


16.30. Sentada no jardim, Madalena começava a sentir-se inquieta. No último contacto tido com Duarte Meireles, este havia-lhe dito que chegaria algum tempo antes da hora marcada para o início da apresentação do livro. Não lhe dissera, no entanto, quanto tempo antes. Agora, faltava uma hora e meia e não havia meio de o conseguir contactar.
Da parte dela, como de costume, estava tudo pronto. De manhã, ultimara os preparativos para o evento, supervisionando todos os pormenores e, depois do almoço, viajara até Tomar para cuidar da sua aparência. Ao sair do salão de cabeleireira/estética, duas horas depois de lá ter entrado, sorriu para a sua imagem projectada no vidro da montra. Era vaidosa, reconhecia, muito vaidosa mesmo.  Não pôde deixar de pensar na impressão que causaria no petulante escritor. Por várias vezes dera por si a pensar como seria ele ao vivo. Adivinhava-lhe o sorriso irónico, o leve arquear de sobrancelha troçando, discretamente, dela, o olhar de sobranceria que a sua superioridade presumida lhe conferia. Estava, decididamente, ansiosa por conhecê-lo pessoalmente e mostrar-lhe que sem a sua insistência – a que, sentia, o irritava, profundamente –, os seus cuidados, a sua supervisão, o evento não seria o sucesso que ela previa. No fundo, pretendia afrontá-lo com o seu profissionalismo.
16.45. Lá dentro, na galeria, Manuel Caseiro continuava a mudar a posição de um ou outro trabalho seu, infernizando todos os que, inadvertidamente, se aproximavam dele. Era um perfeccionista, sem dúvida.
Madalena procurou relaxar, puxando a cadeira mais para a frente, em busca do sol daquela tarde primaveril. Evadiu-se no calor e na tranquilidade do jardim. A lembrança de que João Souto estaria presente no evento acalmou-a. Nunca se espantara com as “coincidências” com que a vida a brindava frequentemente. Esta era mais uma e agradava-lhe de sobremaneira. Conhecera João há cerca de 15 anos e a diferença de idades que os separava – ele era mais velho do que ela 20 anos – nunca tivera importância na amizade que, desde os primeiros momentos partilharam. Recomendado por amigos comuns, o advogado ajudara-a a resolver uma questão relacionada com o aluguer de um apartamento que os pais lhe tinham oferecido. Estabeleceu-se, de imediato, uma relação de respeito, de admiração e de cumplicidade entre ambos. A ela nunca lhe passara despercebida a forma como o amigo a olhava. Até porque a apetência dele pelo sexo feminino era bastante comentada. No entanto, nunca tinham passado do carinho de amigos e de uma ou outra insinuação respeitosamente maliciosa. E, agora, João aparecia-lhe como conhecido de Duarte Meireles e comentador do livro.
O que é que ligaria Duarte Meireles a João Sousa? Um era historiador, o outro advogado. É certo que ambos escreviam, mas os livros de Duarte  Meireles tinham atingido um elevado grau de popularidade – provavelmente devido às histórias romanceadas que fazia da História - enquanto que os do seu amigo faziam sucesso apenas entre o seu núcleo de colegas, amigos, familiares, conhecidos e clientes. Madalena lera todas as críticas que encontrara sobre Duarte Meireles e as suas obras. Todas eram unânimes em apresentá-lo como um profissional competente e rigoroso e como um homem recatado, mas de trato afável. Daí não entender a animosidade contida que sentia na voz e nas palavras de Duarte Meireles. Irritava-o, não duvidava disso.
E, agora, o homem parecia disposto a atormentá-la com a demora em chegar.
Perdida nestes pensamentos, ouviu o relógio da torre da igreja bater as 17 horas.