sábado, 19 de fevereiro de 2011

REMÉDIO D'ALMA


 CAPÍTULO I - PARTE 1


Madalena terminou o chá de jasmim e recostou-se na cadeira, olhando em volta. Era o seu momento de paz. Não o seu momento preferido do dia, porque os seus dias eram, habitualmente, felizes. Mas, aqueles eram os minutos em que relaxava, de facto, e fazia o balanço do dia que passara e planeava o seguinte. Àquela hora já todos tinham saído, deixando os espaços arrumados e ela sentava-se na cozinha a tomar um chá e a repetir a si mesma a certeza da decisão que tomara dois anos antes.
A vida decorria sem grandes percalços, não propriamente vazia, simplesmente linear. Continuava a viver em Tomar, onde tinha nascido e para onde voltara para leccionar, depois do curso terminado. Nunca casara nem tivera relacionamentos longos. Dividia o tempo entre as aulas, as saídas com os amigos, um ou outro namorado de ocasião, e as suas duas grandes paixões: as viagens e os livros. Em suma, a vida corria-lhe bem.
            Mas, apesar dos 40 anos, Madalena sentia que ainda estava tudo por fazer. Era bonita, alegre, sempre bem-disposta e suficientemente pragmática para saber que a qualquer momento a sua vida podia mudar e ela não voltaria as costas a essa mudança.
Assim, quando a oportunidade surgiu, Madalena não hesitou em mudar toda a sua vida.
Constância fazia parte do seu imaginário infantil. Quando era criança, passava, frequentemente, os fins-de-semana de Verão, com os pais, na praia fluvial daquela vila. Bem, na altura, a dita praia não passava de uma estreita e curta língua de areia que bordejava o Zêzere, mas que fazia as delícias da criançada da zona. A viagem, embora não demorasse mais de uma hora, era, por si só, uma festa. E o dia passado na areia e na água, ao sol, com os primos, era o paraíso na Terra. Madalena adorava estar na água e só a enorme taça de salada de fruta, feita com banana, pêssego, pêra e laranja a boiarem no molho que o açúcar amarelo deixava, a conseguia tirar de lá. Já adolescente, continuava a ir com os pais, os primos e os tios, mas escapulia-se, frequentemente, para o outro lado do rio, cujo único acesso era a nado. A densa vegetação dessa margem permitia brincadeiras e namoricos próprios da idade. E, à noite, ficavam todos para as festas, os bailes, as feiras. Madalena gostava, particularmente, dessas noites quentes de Verão em que percorria, com os primos e os amigos, as estreitas ruas da vila. Tanto as ruas como as casas lhe lembravam o Portugal dos Pequenitos que visitara, uma vez, ainda criança.
Conhecia bem o restaurante. Ficava na rua principal da vila e sempre a fascinara o aspecto da casa antiga. Não era demasiado grande e, por isso, tinha um ar acolhedor. O jardim, cercado por um belíssimo gradeamento de ferro forjado, escondia quase toda a casa, excepto a fachada principal, o que a tornava ainda mais misteriosa. Sempre que por ali passava, Madalena quedava-se, com o nariz encostado ao portão, espreitando para dentro. Fascinava-a, sobretudo, o grande sino dourado, pendurado junto à entrada principal. Sonhava que naquela casa viviam pessoas diferentes, extraordinárias. Chegava mesmo a inventar que ali vivia um velho marinheiro reformado, uma excêntrica dama inglesa ou um pirata que se fazia passar por um cavalheiro. À medida que foi crescendo deixou de fantasiar, mas a casa continuou a exercer um enorme fascínio sobre ela.
Quando soube que o restaurante em que a casa tinha sido transformada estava à venda percebeu imediatamente que aquele era o ponto de viragem da sua vida. Já ali tinha jantado algumas vezes e sabia que o espaço merecia muito mais do que duas ou três salas onde comer e um jardim pouco aproveitado. Deslocou-se a Constância, num Sábado à tarde, visitou a casa com os proprietários e, nesse mesmo dia, fechou o negócio. Durante a viagem de regresso para Tomar, foi aperfeiçoando o plano que tinha delineado ainda durante a visita à casa. Sabia muito bem o que fazer com aquele espaço. Numa semana vendeu duas propriedades que os pais lhe tinham oferecido, tratou dos trâmites legais para a compra do espaço, tratou da sua saída do ensino e encontrou uma casa, em Constância, mesmo nas traseiras do antigo restaurante, para onde se mudou duas semanas depois. O espírito pragmático de Madalena sobrepôs-se a todas as dúvidas e receios de familiares e amigos. Percebeu que era aquilo que queria da vida e, rapidamente, o pôs em prática.
Agora, dois anos depois, sentia-se completamente “em casa”. Tinha concebido um espaço completamente diferente dos que conhecia, apostara num conceito inovador e não se arrependera. O restaurante estava sempre cheio, a livraria apresentava um volume de vendas invulgar e a galeria era muito frequentada. Os clientes e visitantes apareciam vindos de todo o país, de todas as faixas etárias e sociais.
O grande hall de entrada permitia o acesso ao restaurante, em frente, e à livraria e galeria de arte, respectivamente, à esquerda. O corredor que acompanhava a livraria e desembocava na galeria era todo envidraçado, o que trazia uma luminosidade pouco habitual neste tipo de espaços, e abria a galeria para o jardim. Este era aproveitado para refeições ao ar livre, quando o tempo o permitia ou para prolongar o espaço da galeria e livraria, aquando de eventos importantes, o que acontecia regularmente. Os três espaços criavam uma harmonia perfeita entre si, sendo cada um o prolongamento dos outros. Nem os clientes do restaurante escapavam à arte, já que as paredes se encontravam decoradas com poemas, quadros e fotografias de elevada qualidade, o mesmo acontecendo com as esculturas dispersas por ali e até com as ementas que se relacionavam sempre, de alguma maneira, com o assunto.
Era para um desses eventos que Madalena se preparava nessa noite. Embora, a apresentação do livro de Duarte Meireles começasse cerca das dezoito horas do dia seguinte, já estava tudo preparado. Como sempre, Madalena tinha cuidado pessoal e meticulosamente de cada detalhe. Lera o livro com a antecedência possível e, versando aquele sobre o castelo de Almourol, rapidamente conseguiu que um fotógrafo da zona, Manuel Caseiro, um ex-colega de trabalho, professor de Educação Visual e Tecnológica, mas também um apaixonado pela fotografia, ali expusesse uma série de trabalhos que ela já tinha visto sobre o tema. Em conjunto com Manuel ainda conseguiu enriquecer a exposição com o resultado de uma exaustiva pesquisa sobre fotos antiquíssimas do local.
As mesas onde se sentariam o autor e os convidados que falariam sobre ele e sobre o livro estavam já dispostas e decoradas no topo da galeria, bem como as cadeiras para a assistência e uma bancada cheia de exemplares que, depois de vendidos – disso cuidaria uma funcionária da casa – seriam, informalmente, autografados pelo autor. Como o tempo já o permitia, seria, posteriormente, servido um Porto de honra, no jardim. Autor e alguns convidados tinham mesa reservada para um jantar tardio no restaurante.
Madalena sentia-se agitada interiormente. Apesar de ter planeado tudo cuidadosamente até ao mais ínfimo pormenor, havia que contar sempre com a personalidade de cada escritor, pintor, escultor, fotógrafo … Este parecera-lhe demasiado reservado quando tinham falado ao telefone. É certo que o seu tom autoritário assustava, habitualmente, qualquer um. Mas, depois de um breve esgrimir de palavras, apercebera-se de que, subtilmente, Duarte Meireles conseguira chegar a um acordo com ela: deixou-a participar em tudo o que se relacionava com a organização do evento, mas, peremptoriamente, não abdicou do que e como diria e de quem convidaria. Madalena não estava habituada a ser contrariada e irritou-a que o autor tivesse levado a sua ideia adiante sem lhe dar possibilidades de retorquir. Percebeu-lhe a personalidade discretamente forte e isso incomodava-a por saber que não teria o poder habitual de ser senhora absoluta da situação.
Lavou e arrumou a chávena do chá, apagou as luzes e saiu pela porta das traseiras, dirigindo-se a casa. No dia seguinte se veria.









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