sábado, 26 de fevereiro de 2011

REMÉDIO D´ALMA



CAPÍTULO I - PARTE 2

        
Lembrava-se vagamente das ruelas estreitas e empinadas da vilória, encravada entre a imensidão da planície, mas sem fazer parte dela, e o sopé das serras d´Aire e Candeeiros, espelhando-se nas águas quase sempre serenas do Zêzere que davam às casinhas pequenas um aspecto ainda mais diminuto, ao mesmo tempo que pareciam refrescá-las e às ruas, quando a canícula dos dias de Julho/Agosto apertava. O espelho de água ainda emprestava um ar docemente fantasmagórico ao conjunto quando o pôr-do-sol se fazia anunciar, fazendo descer as gaivotas ao largo fronteiro à fabrica de pasta de papel, vizinho da praia fluvial com que o rio, numa das curvas mais bem desenhadas de todo o seu percurso, desde o Tejo-pai, quisera brindar indígenas e visitantes – que por essa altura vinham dos mais diversos locais e enchiam, sobretudo durante a tarde, o areal mais comprido que largo e que, nalguns pontos, se misturava com a relva tratada sob a copa de algumas faias frondosas, proporcionando a locais e forasteiros momentos de muito agradável lazer  - oferecendo a uns a possibilidade de ir a banhos sem ver o mar e dando a outros a oportunidade de conhecer uma terra minusculamente, como que de má vontade, apontada no mapa e da qual, a maioria apenas ouvira falar como sendo a Terra de Camões e uma minoria ainda maior lembrava-se apenas vagamente de lhe chamarem, por isso, a “Vila-Poema”.
Mas, Duarte, ainda que há alguns anos tivesse deixado de cirandar por aquela zona, depois que se fixara em Lisboa por força do sucesso que os seus livros iam merecendo, conservava ainda memórias bem vivas da região e desfiava-as agora, depois de desligar o telefone e de confirmar com Madalena Silgueiro que seria ela a próxima futura anfitriã da apresentação do seu mais recente “prelo”. Memórias que, estranhamente, lhe pareciam mais próximas depois de ouvir a voz timbrada e subtilmente nervosa da mulher que, proprietária do que, com algum desplante, ela própria considerara “o espaço ideal para o lançamento público do seu último trabalho”. A verdade é que, sem ter para isso uma explicação consistente, a senhora, ou menina, (estranho como, constatava a sorrir, nem perguntara ou sequer tentara que por sua iniciativa, desde que iniciara negociações, ela lhe revelasse a sua idade , sabendo-a apenas e só, proprietária do espaço que, alguns dias depois, iria servir, durante algumas horas, de cenário a novo contacto com os seus potenciais leitores, e que a própria teimava em considerar o ideal para o efeito! “Sobretudo para um escritor com as características do Duarte…” – dissera-lhe num tom que ele, agora que as palavras dela se lhe insinuavam mais, começava a considerar sobranceiramente familiar!)conseguira convencê-lo, a optar por um local que lhe era totalmente desconhecido e mais do que isso, fora dos lugares muito mais cosmopolitas onde fizera o lançamento das suas anteriores cinco edições! Mais estranho e curioso é que, desde o primeiro contacto, e fora ela que os fizera todos, via telefone, à excepção de um e-mail a detalhar em pormenor as características do restaurante-galeria e que lhe serviu para ficar com o seu endereço electrónico também, a determinação daquela mulher fora progredindo e os seus efeitos entranhando-se em si de forma tão sibilina e subtil que ainda que o quisesse ter feito, não teria podido evitar render-se-lhe! Sem se dar conta, um fino e subtil sorriso ia-lhe aflorando aos lábios, enquanto misturava estes pensamentos com as recordações das viagens por aqueles locais e das características, ricas de Historia, daqueles lugares!
Lembrava como ficava perto o Castelo de Almourol, fortaleza erigida pelos Templários no meio do rio, um pouco mais abaixo de Constância e a pouco minutos mais, de automóvel ou de comboio – era neste meio de transporte, na famosa linha da Beira Baixa, que fazia algumas dessas viagens, a caminho de casa, em Castelo Branco, antes de se tornar conhecido pelos seus escritos e adquirir viatura própria – ficava Vila Nova da Barquinha, a vila presépio, à beira rio plantada, como lhe chamavam… ou um pouco mais para oeste, mas também não muito distante, Tomar, que apesar do marasmo a que estava ainda votada, não deixava de ser a cidade da dita Ordem, sediada que foi no celebérrimo Convento de Cristo e que erguera na “ilhota” no meio do rio o também já referido e romântico Castelo. E Torres Novas, mais para sul,  conhecida por ser a cidade do Almonda, rio que ainda dá o nome a uma das maiores fábricas de papel, curiosamente também de escrita, do país! Enfim, motivos que, inconscientemente ou não, terão contribuído para a opção que acabara de tomar de entregar àquela mulher - cuja persistência o soubera convencer a dizer-lhe “sim!” com um sorriso que ela não viu, mas desconfiava que havia pressentido - a organização de um evento vital para a boa aceitação junto dos leitores do seu mais recente livro.
Aquela voz determinada interpunha-se intermitente para o distrair das lembranças de tempos ainda não muito distantes em que nas suas frequentes viagens, algumas nocturnas, se deleitava com o serpentear prateado do rio, a coberto da calma e do luar, aos quais o silêncio da noite emprestava um romantismo solene quando não era interrompido pelo silvo do comboio numa curva mais apertada da linha, e que na sua necessária inclinação quase parecia tocar aquela imensidão húmida que se estendia montanha acima, quase a perder de vista!
Estranhamente, pensava, era quando trazia à memória tais imagens que a voz da sua próxima anfitriã parecia plasmar-se no seu rebobinar mental daquelas viagens, como que querendo ter quebrado muitos dos momentos de agradável solidão que elas continham, partilhando-as! O tom descaradamente familiar com que omitiu o seu apelido já não o fazia sentir-se algo irritado interiormente, pela sobranceria, mas ia, aos poucos e de cada vez que ele lhe aflorava a mente, colocando-lhe nos lábios o sorriso persistente que o fez, sem querer, ansiar pela anunciada apresentação d’ O Castelo do Rio!
Algo de pouco habitual se estaria a passar com ele para deixar que nos seus pensamentos se intrometesse a voz de alguém que lhe era de todo desconhecido. Mas, racional como se confessava, não deixou de reconhecer para si mesmo que alguma coisa de diferente teria que ter aquela voz para provocar efeito tão pouco comum nele!
Acendendo um cigarro procurou desviar o pensamento para coisas mais pragmáticas e próximas, enquanto descia a avenida, estugando o passo ao dar-se conta da distância a que ainda estava da mais próxima estação do metro que o levaria até próximo do apartamento onde residia. Tinha ainda que tratar de uma quantidade infinda de coisas comezinhas, antes de voltar de novo a dedicar-se às aborrecidas, mas inevitáveis burocracias relacionadas com as actuais e futuras edições dos seus escritos. “E ainda me falta passar por aquele safado! Sem as últimas dicas, não avança com nada!...”, pensou, apagando a beata do desagradável cigarro no cinzeiro do lado de dentro da porta do prédio. A paciência do seu amigo Mário é que ia de novo ser posta à prova pois ia na terceira semana que lhe prometera almoçar com ele para algumas conversas que urgiam e, constatava, teriam de ficar para outras tantas mais tarde! Evitava assim, também, umas quantas evasivas para fugir às suas frequentes insinuações por ainda continuar só. Adorava a bonomia do amigo, mas aborrecia-o, por vezes, a insistência com que parecia querer vê-lo com alguém que fosse “mais do que uma gaja boa, uma companheira solidária, que partilhe das tuas inatas capacidades e te ature as manias…”.
As frequentes e tão apimentadas quanto graciosas e indeléveis “bocas” do seu amigo de há longos anos, puseram-lhe o pensamento, outra vez, no trilho dos caminhos e das viagens pela província, do local onde, incrivelmente – dizia-o a si próprio – e à revelia de tudo o que, pouco mais de um mês antes, pudesse ter pensado acerca disso, iria fazer o lançamento do seu novo livro! Tinha já uma primeira impressão sobre o impacto e a aceitação que ele teria junto do público, através da opinião que Madalena - a quem, como era habitual antes dum evento como aquele, enviara alguns exemplares para autografar “in loco” durante o acontecimento – não se coibira de lhe dar, numa das conversas de negociações que com ela tinha tido e na qual ela aproveitara, mais uma vez, para lhe demonstrar o quanto estava determinada a fazer de Constância e da sua Galeria um lugar badalado, ao menos por algumas horas!
- Sou suspeita, bem sei, mas adorei, senhor Meireles! Nem pense em fazer com que eu perca a oportunidade de lhe dizer pessoalmente o que achei do seu romance!
Tinha intuído um esgar vitorioso no rosto feminino do outro lado do fio, ao perceber que ele ficou por alguns momentos silencioso, sem querer ou sem poder argumentar! E essa primeira manifestação tão genuína dera-lhe também a primeira noção, ainda que mínima, do impacto que o seu livro poderia vir a ter fora da capital e dos centros com mais apetência pelas coisas da literatura. Isso e a forma como com ele argumentava em breves, mas intensos diálogos ao telefone, sem nunca se esquecer de rematar cada argumento com um sorriso que sabia ser cativante, mesmo quando no meio de manifestações de desacordo! “Interessante! Muito interessante mesmo!...”, pensava então.
Decididamente, resolveu dedicar a maior parte do seu tempo até lá à preparação do evento! E decidiu que não tinha de ser mais solene que os anteriores, e desejou mesmo que pudesse ser mais intimista, sem que isso lhe retirasse a visibilidade, pelo menos local e regional! Seria uma forma de prestar homenagem a um público com menos possibilidades de aceder a manifestações daquele cariz e também uma maneira a seu modo, de alguma forma original, de sair do estabelecido em acontecimentos semelhantes! E sentiu-se entusiasmar como nem aquando da estreia, quando se confrontou com o nervoso miudinho de pensar que tanta gente iria ter acesso, poder ler o que ele escrevia!... E deu por si a agradecer à mulher que ainda não conhecia o querer, a persistência e o arreganho argumentativo de que lhe dera provas!
          Apesar deles, conseguira, contudo, que Madalena, não obstante a sua persistência, concordasse em que seria ele a escolher o momento da breve alocução que dirigiria aos assistentes e convidados e seria também de sua iniciativa a escolha destes. Em tudo o resto, a liberdade e a criatividade dela, ele não iria interferir, assentaram! Com estes pensamentos mais ou menos arrumados, voltou a sair do apartamento que não passava de um pequeno espaço onde, para além da panóplia de “ferramentas” relacionadas com a sua actividade de autor, entre as quais sobressaíam a secretária metálica, o pc e acessórios, e uma ou duas estantes pejadas de livros e outra documentação avulsa, se via a um canto desta salinha de trabalho uma planta que a tornava mais airosa e na parede atrás de si, um quadro emoldurando a pauta da “Moonlight Sonata” de Beethoven! - Adorava música e, em particular, algumas sinfonias e concertos clássicos e aquela era uma delas... Fora-lhe oferecido por outro dos seus maiores amigos, o Doutor Carlos, que apreciava tanto como ele a harmonia dos sons, mas “não tinha ouvido nem para as soletrar ou sequer assobiar” como ele lhe dizia! Aquele que considerava o seu refúgio de trabalho e meditação, tinha ainda o quarto individual, que era, talvez, o único sítio parecido com um lar a sério, atapetado e com uma cama cómoda, um aparelho de tv que nunca via, um pequeno bar e ao lado de uma cómoda e de um guarda-fatos onde cabiam todas as peças das suas indumentárias, que gostava de mudar com frequência, no único espaço vazio sobrante, outra pequena estante com...mais livros! Sobre o espaldar da cama outro quadro, este com laivos de erotismo, representando uma bela mulher nua, de costas, numa pose entre a timidez e o insinuante, de autor desconhecido! O quarto de banho tinha apenas o indispensável, além de um pequeno armário onde guardava as coisas da sua higiene pessoal. Por fim, uma pequena “kitchnet” onde, às vezes, conseguia tomar o pequeno almoço!...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Noite Enamorada

    Aquele recanto do quarto encontrava-se quase na penumbra, iluminado, difusamente, pela luz das velas espalhadas pela sala. Há mais de uma hora que anoitecera. A mesa estava posta para dois. A louça da Vista Alegre, os talheres e o castiçal de prata, os cristais Strauss, a toalha de linho branco bordada. Tudo limpo e meticulosamente arrumado. Só faltavas tu. A casa esperava-te.
    
    Pelo canto da gaveta da cómoda uma ponta de tecido preto espreitava. Na quietude do ambiente sentia-se atento. Um movimento quase imperceptível, um aroma diferente alertaram-no. Como uma serpente, silencioso e ondulante, o meu vestido preto deslizou para fora da gaveta. A seda gemeu ao roçar na madeira. Dengoso, o meu vestido preto aproximou-se da porta do quarto, ergueu-se e passeou-se pelo corredor. Era um vestido elegante, justo, com um decote generoso, alças finas e saia em viés. Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. Mas era a sala que o atraía. Meio escondido por um móvel, espreitou.

    Apesar de ser Inverno, a noite estava estranhamente tépida. Por isso, uma janela da sala encontrava-se ligeiramente entreaberta. Pela estreita frecha, dissimulada por trás do cortinado, a manga da tua camisa branca ondulava. No tecido alvíssimo brilhava um dos botões de punho que eu te oferecera há precisamente um ano atrás, no Dia dos Namorados.

    O meu vestido preto deslizou, encostado à parede, para dentro da sala. A tua camisa branca escorregou, brandamente, pela janela até passar pelo cortinado. Ficaram assim uns segundos. Cada um num canto da sala. Olhando-se insinuantemente. Devagar, moveram-se num jogo de sedução de avanços e recuos. Lentamente, foram-se aproximando um do outro e, em pouco tempo, encontravam-se frente a frente. Dissimuladamente, a ponta da saia do meu vestido preto rasou a ponta da tua camisa banca. Com um movimento lento, mas seguro, a manga da tua camisa enlaçou a cintura do meu vestido. E ambos iniciaram uma dança lenta, deslizando pela sala, ao som da música suave. A alça do meu vestido preto deixou-se tombar sobre o ombro da tua camisa branca que se apertou um pouco mais contra ele. Coquete, o meu vestido preto soltou-se da tua camisa branca e afastou-se, bamboleando-se. Mas a manga da tua camisa puxou o meu vestido com suavidade e firmeza. Aos poucos, o ritmo da dança foi aumentando e ambos rodopiavam já freneticamente pela sala. Num ritmo insensato o meu vestido preto e a tua camisa branca enredavam-se numa exaltação sem limites. E eram já alças, botões, negros, brancos, que se roçavam, entrelaçavam, enredavam. Pelos móveis escorriam sedas, deleitavam-se bainhas, costuras e colarinhos. A música pulsava nas fibras, inaudível. Lançados num precipício, o meu vestido preto e a tua camisa branca desciam, vertiginosamente. E, num último êxtase, o tempo parou. Suspensos, suportaram-se, fugazmente, e abandonaram-se, finalmente, numa queda ondulante até ao fundo do repouso.

*

    Da cozinha vinha uma mistura de cheiros afrodisíacos e o som de uma música suave. A sala continuava meticulosamente arrumada. Só no sofá o meu vestido preto e a tua camisa branca repousavam, languidamente, entrelaçados.



                                                                                                                                           Simone

REMÉDIO D'ALMA


 CAPÍTULO I - PARTE 1


Madalena terminou o chá de jasmim e recostou-se na cadeira, olhando em volta. Era o seu momento de paz. Não o seu momento preferido do dia, porque os seus dias eram, habitualmente, felizes. Mas, aqueles eram os minutos em que relaxava, de facto, e fazia o balanço do dia que passara e planeava o seguinte. Àquela hora já todos tinham saído, deixando os espaços arrumados e ela sentava-se na cozinha a tomar um chá e a repetir a si mesma a certeza da decisão que tomara dois anos antes.
A vida decorria sem grandes percalços, não propriamente vazia, simplesmente linear. Continuava a viver em Tomar, onde tinha nascido e para onde voltara para leccionar, depois do curso terminado. Nunca casara nem tivera relacionamentos longos. Dividia o tempo entre as aulas, as saídas com os amigos, um ou outro namorado de ocasião, e as suas duas grandes paixões: as viagens e os livros. Em suma, a vida corria-lhe bem.
            Mas, apesar dos 40 anos, Madalena sentia que ainda estava tudo por fazer. Era bonita, alegre, sempre bem-disposta e suficientemente pragmática para saber que a qualquer momento a sua vida podia mudar e ela não voltaria as costas a essa mudança.
Assim, quando a oportunidade surgiu, Madalena não hesitou em mudar toda a sua vida.
Constância fazia parte do seu imaginário infantil. Quando era criança, passava, frequentemente, os fins-de-semana de Verão, com os pais, na praia fluvial daquela vila. Bem, na altura, a dita praia não passava de uma estreita e curta língua de areia que bordejava o Zêzere, mas que fazia as delícias da criançada da zona. A viagem, embora não demorasse mais de uma hora, era, por si só, uma festa. E o dia passado na areia e na água, ao sol, com os primos, era o paraíso na Terra. Madalena adorava estar na água e só a enorme taça de salada de fruta, feita com banana, pêssego, pêra e laranja a boiarem no molho que o açúcar amarelo deixava, a conseguia tirar de lá. Já adolescente, continuava a ir com os pais, os primos e os tios, mas escapulia-se, frequentemente, para o outro lado do rio, cujo único acesso era a nado. A densa vegetação dessa margem permitia brincadeiras e namoricos próprios da idade. E, à noite, ficavam todos para as festas, os bailes, as feiras. Madalena gostava, particularmente, dessas noites quentes de Verão em que percorria, com os primos e os amigos, as estreitas ruas da vila. Tanto as ruas como as casas lhe lembravam o Portugal dos Pequenitos que visitara, uma vez, ainda criança.
Conhecia bem o restaurante. Ficava na rua principal da vila e sempre a fascinara o aspecto da casa antiga. Não era demasiado grande e, por isso, tinha um ar acolhedor. O jardim, cercado por um belíssimo gradeamento de ferro forjado, escondia quase toda a casa, excepto a fachada principal, o que a tornava ainda mais misteriosa. Sempre que por ali passava, Madalena quedava-se, com o nariz encostado ao portão, espreitando para dentro. Fascinava-a, sobretudo, o grande sino dourado, pendurado junto à entrada principal. Sonhava que naquela casa viviam pessoas diferentes, extraordinárias. Chegava mesmo a inventar que ali vivia um velho marinheiro reformado, uma excêntrica dama inglesa ou um pirata que se fazia passar por um cavalheiro. À medida que foi crescendo deixou de fantasiar, mas a casa continuou a exercer um enorme fascínio sobre ela.
Quando soube que o restaurante em que a casa tinha sido transformada estava à venda percebeu imediatamente que aquele era o ponto de viragem da sua vida. Já ali tinha jantado algumas vezes e sabia que o espaço merecia muito mais do que duas ou três salas onde comer e um jardim pouco aproveitado. Deslocou-se a Constância, num Sábado à tarde, visitou a casa com os proprietários e, nesse mesmo dia, fechou o negócio. Durante a viagem de regresso para Tomar, foi aperfeiçoando o plano que tinha delineado ainda durante a visita à casa. Sabia muito bem o que fazer com aquele espaço. Numa semana vendeu duas propriedades que os pais lhe tinham oferecido, tratou dos trâmites legais para a compra do espaço, tratou da sua saída do ensino e encontrou uma casa, em Constância, mesmo nas traseiras do antigo restaurante, para onde se mudou duas semanas depois. O espírito pragmático de Madalena sobrepôs-se a todas as dúvidas e receios de familiares e amigos. Percebeu que era aquilo que queria da vida e, rapidamente, o pôs em prática.
Agora, dois anos depois, sentia-se completamente “em casa”. Tinha concebido um espaço completamente diferente dos que conhecia, apostara num conceito inovador e não se arrependera. O restaurante estava sempre cheio, a livraria apresentava um volume de vendas invulgar e a galeria era muito frequentada. Os clientes e visitantes apareciam vindos de todo o país, de todas as faixas etárias e sociais.
O grande hall de entrada permitia o acesso ao restaurante, em frente, e à livraria e galeria de arte, respectivamente, à esquerda. O corredor que acompanhava a livraria e desembocava na galeria era todo envidraçado, o que trazia uma luminosidade pouco habitual neste tipo de espaços, e abria a galeria para o jardim. Este era aproveitado para refeições ao ar livre, quando o tempo o permitia ou para prolongar o espaço da galeria e livraria, aquando de eventos importantes, o que acontecia regularmente. Os três espaços criavam uma harmonia perfeita entre si, sendo cada um o prolongamento dos outros. Nem os clientes do restaurante escapavam à arte, já que as paredes se encontravam decoradas com poemas, quadros e fotografias de elevada qualidade, o mesmo acontecendo com as esculturas dispersas por ali e até com as ementas que se relacionavam sempre, de alguma maneira, com o assunto.
Era para um desses eventos que Madalena se preparava nessa noite. Embora, a apresentação do livro de Duarte Meireles começasse cerca das dezoito horas do dia seguinte, já estava tudo preparado. Como sempre, Madalena tinha cuidado pessoal e meticulosamente de cada detalhe. Lera o livro com a antecedência possível e, versando aquele sobre o castelo de Almourol, rapidamente conseguiu que um fotógrafo da zona, Manuel Caseiro, um ex-colega de trabalho, professor de Educação Visual e Tecnológica, mas também um apaixonado pela fotografia, ali expusesse uma série de trabalhos que ela já tinha visto sobre o tema. Em conjunto com Manuel ainda conseguiu enriquecer a exposição com o resultado de uma exaustiva pesquisa sobre fotos antiquíssimas do local.
As mesas onde se sentariam o autor e os convidados que falariam sobre ele e sobre o livro estavam já dispostas e decoradas no topo da galeria, bem como as cadeiras para a assistência e uma bancada cheia de exemplares que, depois de vendidos – disso cuidaria uma funcionária da casa – seriam, informalmente, autografados pelo autor. Como o tempo já o permitia, seria, posteriormente, servido um Porto de honra, no jardim. Autor e alguns convidados tinham mesa reservada para um jantar tardio no restaurante.
Madalena sentia-se agitada interiormente. Apesar de ter planeado tudo cuidadosamente até ao mais ínfimo pormenor, havia que contar sempre com a personalidade de cada escritor, pintor, escultor, fotógrafo … Este parecera-lhe demasiado reservado quando tinham falado ao telefone. É certo que o seu tom autoritário assustava, habitualmente, qualquer um. Mas, depois de um breve esgrimir de palavras, apercebera-se de que, subtilmente, Duarte Meireles conseguira chegar a um acordo com ela: deixou-a participar em tudo o que se relacionava com a organização do evento, mas, peremptoriamente, não abdicou do que e como diria e de quem convidaria. Madalena não estava habituada a ser contrariada e irritou-a que o autor tivesse levado a sua ideia adiante sem lhe dar possibilidades de retorquir. Percebeu-lhe a personalidade discretamente forte e isso incomodava-a por saber que não teria o poder habitual de ser senhora absoluta da situação.
Lavou e arrumou a chávena do chá, apagou as luzes e saiu pela porta das traseiras, dirigindo-se a casa. No dia seguinte se veria.









    Disse-te: "Gosto de adjectivos, mas desvalorizo-os!". Fazem-me sorrir,sabes...

    E sorrio quando me apelidam de casmurro, volto a sorrir quando me chamam de presumido e rio à gargalhada se o adjectivo é do genero...deselegante, intelectual... São os que desvalorizo!

    Mas há outros que me fazem pespegar nos lábios um sorriso suave, manso, recatado que, por vezes, me faz pensar que sorrio mais para dentro que para fora, embora, quem me saiba ler nos olhos percepcione a franqueza desse sorriso interior imenso! E lembro-me que sorri com esse jeito desmesuradamente íntrinseco quando me disseste e insististe (tu és teimosa, "possa"! ) que gostavas de saber como produzir um blogue. Sorri da tua teimosia e lembrei-me que nunca me apeteceu chamar-lhe casmurrice! Manias minhas, pois... E sorri porque me vi, teimosamente, a tentar, elegantemente, juntar as intelectualidades de ambos, a elegância dos dois e ir fazendo algo que nos trouxesse impulsos racionais e nos deixasse saborear momentos nossos, racionalmente produzidos e sentimentalmente vividos! E ri à gargalhada, na alma, quando percepcionei que isso era bom e que tu sentias que o ia ser.

    Depois, escrevendo uma letra aqui, uma frase acolá...além um verso sem jeito, mais tarde a aplicação de uma aprendizagem aplicada - onde tu és perita e eu descuidado!... - dei por nós a fazer experiências, a sorrir, a conseguir... e a felicitarmo-nos por partilharmos coisas nossas que, entretanto e persitentemente, vamos conseguindo pôr aqui.

    Aquela frase por onde começámos e com que encimámos esta coisa a que chamamos NOSSA faz sentido, não faz? E não tivemos que teimar nem "casmurrar" para percebermos, num ápice, que estávamos de acordo nisso e nela!

    E agora...aqui estamos! E somos NÓS e não queremos deixar de o ser! Degustando letras, sons, fantasias, sorrisos... daqueles; viagens, sítios, passagens, imagens...

    E ainda que a casmurrice ou a teimosia se sobreponham, sem arte, ao sabor das invenções imaginadas e aqui postadas, nunca nos olharemos de soslaio nem deixaremos que a nossa escrita apareça de viés!

    Construiremos...ENREDOS!


                                                                                                                                               Saulo